O Gaúcho: Na verdade, Um Bravo. Tradicionalismo.

A origem do termo GAÚCHO não é pacifica, mas há indicativos muito fortes que apontam historicamente o significado da palavra.

Remotamente, na época conhecida como a “idade do couro”, o habitante do pampa era chamado de “guasca”. O termo muitas vezes citado como se fora pejorativo, recebe de Machado de Assis (in Quincas Borba) significado de elogio. Ao referir-se a uma filha do Rio Grande, diz: “E uma guasca de primeira ordem”. Guasca correspondia a uma interjeição elogiosa que era pronunciada como um titulo de hombridade e destemor. Fala-se em guasca largado como quem dissesse quebra largado, torena, monarca das cochilhas. Como quem diz – Gaúcho.

Pouco mais tarde, no século XVIII surge o termo “gaudério”, tanto no território brasileiro quanto no castelhano. O gaudério, tido como homem sem lei nem rei, que “morava na sua camisa, debaixo do seu chapéu”, mantinha-se num equilíbrio instável entre o índio e o branco. A sua atividade marginal estendeu-se por mais de um século de história do pampa, formando com os “coureadores” e “changadores” uma espécie de associação de rapinagem mais ou menos organizada que chegou a constituir grave problema para os guardas volantes da campanha.

O termo “gaúcho”, surgiu, provavelmente, no último quartel do século XVIII e aparece como sinônimo de “gaudério”. Emílio Coni cita um parecer propondo a criação de uma partida volante para que “persiguiese y arrestase a los muchos malévolos, ladrones, desertores y peones de todas castas, que llaman Gaúchos o Gauderios ...”.

O sentido pejorativo da palavra gaúcho, numa e noutra banda, mantém-se quase inalterado, até meados do século XIX. Azara, Saint-Hilaire, Arsène Isabele, Alcide D’Orbigny, todos são concordes em apresentá-los como homens sem lei e nem rei, campistas perturbadores da paz, vagabundos que alarmavam os governantes e ocupavam a polícia.

Mas, para bem interpretar as observações de autoridades e viajantes, não devemos omitir a consciência histórica do momento e do meio, com todo o conjunto de fatores operantes, isto é, a fronteira aberta, sujeita a uma revisão de limites que se prolongava por mais de cem anos, os campos abertos e na fase de conquista e povoamento, a natural solicitação daquele tipo de vida fragueira e mais ou menos ancha, com a abundância de gado alçado a assegurar a subsistência fácil, a deserção freqüente das tropas regulares e, finalmente, as condições de pastoreio da época, espécie de círculo vicioso econômico, agravando as conseqüências de uma política de exploração leviana e imprevidente das terras novas da Colônia.

Outro fator importante que forma a estrutura do ambiente em que vivia o “gaúcho”, da metade do século XVIII até a metade do século XIX, estava a prática de distribuição de sesmarias. Augusto Meyer, ao se referir ao assunto afirma: “A sesmaria, área que podia variar entre dez mil e treze mil hectares, beneficiando uma insignificante minoria de privilegiados, na prática, revelou-se um prêmio às formas improdutivas do trabalho, com a máxima vantagem individual, em detrimento das garantias médias do trabalho assalariado” (1957).

Aos grandes proprietários de terras, era muito mais barato comprar um escravo, que lhe rendia uns 20 anos de trabalho gratuito, do que manter um assalariado. Assim, muitas estâncias estavam cheias de gaúchos sem salário, diz um relatório, “porque em vez de peões, os ricos apenas mantêm capatazes e escravos, e esta gente gaúcha está naturalmente voltada para os gados chimarrões, ou para as fainas clandestinas dos couros” . Os interesses dos comerciantes europeus, ingleses, franceses, holandeses e portugueses, que abasteciam os colonizadores de Buenos Aires, Códoba, Tucumám e Lima, contavam com a Banda oriental (atual Uruguai) e parte do Rio Grande do Sul, como espaço aberto e como um meio de expansão. Estes mesmos comerciantes é que compravam os couros dos gaúchos.

Se há um caso na história em que a explicação por meio de fatores econômicos e sociais, tem perfeito cabimento, este é o caso do gaúcho primitivo, durante o período colonial. É resultado daquele complexo cultural representado pelo cavalo, gado alçado e valorização do couro, movendo-se num meio de pampas abertas, onde as raias avançavam e recuavam de acordo com os entendimentos entre os reis portugueses e espanhóis.

Com o passar dos anos, o aprofundamento do processo colonizador e a definição das linhas divisórias entre os países, propiciaram ao gaúcho outras condições sociais e econômicas. Os gaúchos passaram a ser chamados a integrar as tropas dos comandantes militares locais que, de estancieiros, travestiam-se em coronéis, comandando a resistência contra as tentativas de invasão, ora dos espanhóis, ora dos portugueses. O processo evolutivo da sociedade campesina, foi muito semelhante no Rio Grande, no Uruguai e na Argentina. Aos poucos, o vocábulo “gaúcho” adquiriu outro sentido, completamente oposto ao do original. Aqueles homens rudes, valentes, independentes, amantes da liberdade, exímios cavaleiros, eram também bons soldados, empenhados peões, até bons agregados, bastava que lhes dispensasse respito e um pouco de compreensão.

Hermann Burmeister, em sua obra Reise durch die la Plata-Staaten (1861), assim descreve o gaúcho: “Erro grave é considerar os Gaúchos como gente grosseira ou brutal, ou, sem mais rodeios, como simples salteadores e bandidos; longe disso, o que os caracteriza é principalmente uma viva suscetibilidade e um inegável sentimento cavalheiresco, que logo os leva a ter em conta de superior toda pessoa mais ilustrada, ou de mais alta categoria social, que os tratar com deferência. Pelo contrário, a altivez e grosseria provocam de sua parte uma repulsa imediata”.

Desde a época da Revolução Farroupilha (1835-45) e, especialmente depois da Guerra do Paraguay (1860-65) a palavra gaúcho passou a significar o homem do campo, ligado a atividade pastoril, de maneira específica e a identificar os nascidos no Rio Grande do Sul, de forma genérica. A mudança ocorrida não foi fruto de lei ou de imposição, mas resultado da evolução natural da sociedade e da compreensão de que o homem é parte integrante do ambiente em que vive e sua condição muito se deve aos fatores a que está submetido.

Poderíamos resumir a trajetória do vocábulo “gaúcho”, dizendo que na época dos capitães-generais e primeiros proprietários era ladrão, vagabundo e coureador; para os capitães de milícias e comandantes de tropas empenhadas na defesa das fronteiras, era bombeiro, chasque, isca para o inimigo; nas guerras da independência do Prata, era lanceiro, miliciano; depois, para os homens da cidade, era o trabalhador rural, homem afeito aos serviços do pastoreio, peão de estância, campeiro destro, sinônimo de guasca ou monarca; finalmente, desde os primórdios do século passado, um nome gentílico, a exemplo de carioca, barriga-verde, capixaba, fluminense.

Cantado em prosa e verso, o gaúcho traz no nome o resumo de uma história, traz na alma a liberdade e no coração o sentimento nativista mais notório entre os brasileiros

Quem é gaúcho de lei
 E bom guasca de tudo,
 Ama, acima de tudo, 
 O bom sol da liberdade

Nos campos de minha terra,
 Sou gaúcho sem patrão;
 De a cavalo, bem armado,
 Minha lei é o coração.

 


 Manoelito Carlos Savaris Tradicionalista e historiador.